terça-feira, 24 de outubro de 2017

Da ilusão à primavera



Gostaria de escrever sobre a primavera, mas ela chegou faz tempo e não demorará a ir embora. Em boa hora a primavera chegou. Queria falar sobre essa hora e sobre essa mais nova primavera... Será que ainda é relevante? Será que ainda vale a pena dizer que o inverno deu lugar à estação que eu mais esperava?

Eu esperei por ela e como esperei. Em alguns momentos ela parecia que nunca mais ia chegar. Eu já estava amargurada com o frio, com o céu sempre desgostoso da vida, com o ar gelado que me feria os lábios, com as cores mortas com as quais, inconscientemente, me identificava... Ouvi dizer que temos tendência a odiar aquilo que, para gente, é como um reflexo no espelho.

Eu queria cores! Deixei-me encantar pelas tímidas folhas que surgiram nas pontas das árvores desfolhadas pela fúria da estação anterior. Senti resquícios de esperança ao ver as vitrines serem invadidas pelas blusinhas de cores radiantes e pelos vestidinhos de estampas florais. A essa altura, já me consumia a antipatia pelos tons pastéis.

A ilusão foi instaurada quando me encontrei com o primeiro Ipê que já estava amarelo. A sensação de que havia me reencontrado com a melhor das estações se reforçou quando vi cair do alto de um Jacarandá recheado pela cor lilás a última folha que nele ficaria durante aquela estação.

Eu me deixei levar, novamente, pela doce estação que hora ou outra traz sua cólera , sua secura, seus ares tóxicos e seus tons piores que os pastéis. O clima seco e a selvageria dos ventos espalham o fogo, a fumaça, o transtorno e o arrependimento naqueles que tanto esperaram a falsa calmaria da primavera. Nem só de céu azul, temperatura agradável à pele e flores é feita a primavera. É difícil de lidar, porque ainda não aprendi a brincar com a beleza, com a alegria ao mesmo tempo que brinco com a feiura e com a dor.

Hoje, eu só quero que a primavera acabe e leve consigo os momentos pífios de alegria e conforto que me proporcionou. De nada vale a beleza do azul anil distorcido pelo cinza que paira na atmosfera. De nada vale o calorzinho aconchegante dos raios desse sol tão otimista quando uma falsa neblina o transforma em uma mera bolo de fogo que não irradia nada a não ser desconforto. De nada me serve a chuva de fuligem que não mata minha sede.

Que eu nunca mais queira a ilusão da primavera...