sexta-feira, 31 de março de 2017

Sobre as coisas que me fazem querer lembrar de você

Em um piscar, os meus olhos montaram coleções parecidas com os negativos das velhas câmeras analógicas. Nada era muito nítido, mas a cada frame meio borrado, predominado por tons fantasmagóricos, montei um acervo de lembranças, grande o suficiente, para reviver o que eu pensava já ter esquecido.

Em outro piscar, os meus olhos puderam rever certo momento em que você me pegou pelas mãos e me pediu outro abraço. Você me disse: temos mais cinco minutos. Deitei-me ao seu lado a fim de lhe entregar o abraço que havia pedido, vi meu rosto pressionado no espaço entre seu peito e seu pescoço e acabei espirrando ao sentir o cheiro cítrico do perfume que havia acabado de usar. Por ter sido inusitada tal situação, rimos.

Em um terceiro e pesaroso piscar, meus olhos nos viram em silêncio. Eu sorria, discretamente, mas sorria, enquanto fechava lentamente os olhos e imaginava um leve sorriso também esboçado em seus lábios. Foi aí que, em um quarto e já úmido piscar, meus olhos vagos encaravam a parede branca e lânguida prostrada à minha frente. Consumida por algo parecido com o desespero, vi-me, novamente, tentando lhe dizer, por meio de telepatia, as coisas que por ventura não disse.

Já exausta, por ter descoberto, depois de certo esforço, que eu não possuía o poder da telecinésia, organizei, a meu modo, uma versão com cortes do nosso filme. Retirei os negativos queimados, adaptei as imagens que pareciam não fazer sentido e reescrevi o roteiro, porque infelizmente não me lembrava com exatidão quais palavras havíamos usado. Então, em um piscar parecido com o mar vermelho, meus olhos se imaginaram ao lado dos seus assistindo ao nosso pequeno filme por um álbum que podíamos correr com os dedos.

Em um quinto piscar seco e consternado, meus olhos enxergaram a conformidade. Parecia o bastante lembrar apenas daquilo que me fazia tanto querer lembrar de você. De súbito, em um sexto piscar, vi seus olhos, senti seu cheiro, apreciei seu sorriso, dancei mentalmente ouvindo o som da sua voz, senti apertar-me o seu abraço, me arrepiei com a aspereza de suas mãos, entreguei-me à intensidade do seu beijo e recebi com esperança o seu até breve.

Em um sétimo e, agora, já tranquilo piscar, meus olhos se viram de frente para um espelho, e nesse espelho eu sorria. Assim, guardei os negativos em envelopes vermelhos que selei com adesivos bonitinhos e os deitei dentro de uma caixa de recordações. O nosso filme, modesto e curto, guardei em minha memória para rever nos momentos em que eu começar a pensar que não existem motivos para que eu queira me lembrar de você.

sábado, 4 de março de 2017

Sobre gargalhar até doer a barriga

Era manhã, e ela vestia shorts floridos e uma camiseta branca. Nos cabelos negros e levemente cacheados um laço de fita mal atado combinava com os sapatinhos cor de rosa que estavam em cima de meinhas brancas de renda. Ela sorria, e o céu estava muito azul, o vento estava confortavelmente fresco, o sol confortavelmente quente e o lago enfeitado com lindos patinhos de variadas cores e tamanhos.

Ela se divertia enquanto percorria a grama à margem do lago, imitava os “quá quás” que os animaizinhos produziam e sorria, e gargalhava. Seus pais que a observavam bem de perto se entreolhavam e sorriam juntos. O pai, querendo ver a filha ainda mais feliz, levou pedaços de pão e começou a alimentar os patos, a cada pedaço abocanhado pelos bicos alaranjados como um por do sol, gargalhadas sinceras eram compartilhadas com os transeuntes. Ela gargalhava, gargalhava tanto, que sua barriguinha parecia começar a querer doer, ela pulava, gritava, inclinava o corpo, colocava as mãozinhas na barriga e gargalhava.

O pai, que parecia encantado com, a súbita, e ao mesmo tempo inocente, felicidade da filha, trazia consigo um olhar orgulhoso de si mesmo. Incansável, atirava os farelos para os patinhos e decidiu, sem vergonha, receio, ou pudor se divertir também. Sua barriga parecia começar a dar aquela dorzinha gostosa, e ele pulava, inclinava o corpo, colocava as mãos na barriga e gargalhava, gargalhava e gargalhava.