quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Narradora onisciente


Eu nasci para ser só. E para aplaudir aqueles que sorriem acompanhados. Eu nasci para dar nós nas pontas das cortinas e assim expor a janela pela qual eu observo e admiro amores alheios. Eu nasci para limpar o pó que diariamente se acumula em meu coração. Eu nasci para servir de pouso aos passarinhos que viajam rumo a corações de terceiros para semear suas sementes.  Eu nasci para ser só, e para ver essas flores florescerem. Talvez, isso faça eu ter propriedade e sobriedade para falar sobre o amor.

Eu nasci para ser só e para escolher permanecer só. Nasci para me olhar no espelho e sentir que tenho o bastante. Nasci para dizer que não tenho paciência e que me enjoo rápido de tudo que se pareça com a rotina. Nasci para ser só e me parece que gosto disso. Afinal, nasci com apreço por deixar os outros irem, não sou o tipo de pessoa insistente. Nasci para nunca implorar para alguém ficar. Talvez por isso, eu tenha facilidade para limpar tanta bagunça sozinha.

Eu nasci para escrever sobre a solidão e sobre os romances que vi, de longe, vingarem. Nasci para ser terceira, e não primeira pessoa. A coadjuvante. A narradora onisciente. A poetisa boêmia. Nasci para viver tudo, menos o amor reciproco. Nasci para aceitar e para não prender com correntes os pés daqueles que amei. Nasci para ser só e para ser leve como uma pluma. Sou grata. Talvez, eu não tenha nascido para dar nós e sim para desatá-los. Afinal, em um momento ou outro sempre desato o nó da cortina e cubro a janela. Talvez, eu não tenha nascido para ser só, mas sim para saber o momento certo de sair de cena e parar de observar.

sábado, 4 de novembro de 2017

Um, dois, três...


Na hora de dormir ela chora e conta nos dedos os sonhos que um dia teve. Suspira e lembra-se que perdeu a chave que abre o baú no qual os guardou. Ao sentar-se em sua cama encosta seus pés trêmulos no chão frio e seu semblante desfalecido não muda. Dominada pela apatia tenta contar nos dedos os planos que um dia teve e chora por não conseguir se lembrar deles. O choro silencioso e comedido lhe tira do modo manual e, automaticamente, ela decide ir viver. Viver uma vida que se transformou em um eterno escovar dentes, vestir roupas adequadas, cumprir protocolos, lidar com obrigações, passar parte do dia sentada em cadeiras pouco confortáveis, ou em pé em filas que causam dor nas pernas ao fim do dia, ouvir conversas aleatórias que nada acrescentam em sua vida e que inevitavelmente entram em um ouvido e saem pelo outro.

Assim, enquanto segura a senha que lhe permitirá ser atendida no banco, ela fecha os olhos e conta nos dedos as dores que um dia sentiu e chora por dentro ao constatar que elas não lhe cabem nas mãos. Ao ouvir o sinal que lhe chama para o atendimento ela se levanta mesmo sem forças, engole o choro por alguns segundos, paga suas contas, resolve seus problemas e pega o boleto para pagar no próximo mês. Meio tonta vence a porta giratória, cumprimenta o vigilante com uma leve tristeza nos olhos, aperta os passos, o corpo sente o choque ao deixar o ar condicionado e se chocar com o sol quente, ela aperta ainda mais os passos, certifica-se de que não tem ninguém olhando e “implode”. O choro compulsivo lhe invade e os passos ficam cada vez mais apertados e desordenados. Aflita ela conta nos dedos os medos que ela tanto tem, e desnorteada, atordoada, já quase sem ouvir ou ver, o choro cessa, os medos aumentam e eles já não lhe cabem na alma.

Já em casa, ela se deita, permite-se voltar a chorar copiosamente e sofre. Consternada ela conta nos dedos as decepções que dão sustentação ao medo e, deles, dão conta os dedos das mãos e dos pés. No meio de tudo isso a dor que ela sente ela não consegue explicar. Ela deseja o grito, mas ele não lhe sai da garganta. Ela deseja correr sem rumo, mas as forças não lhe vêm às pernas. Ela deseja o sono, mas sua cabeça não para de funcionar. A dor ela não sabe de onde vem e ela nem sabe nos explicar como ela machuca. Ela só sabe que ela vem e que ela machuca. Machuca por dentro, machuca por fora. A dor que ela sente deixa marcas. Marcas invisíveis e visíveis também que multiplicam o medo, que extinguem os desejos e enterram os sonhos.