quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Narradora onisciente


Eu nasci para ser só. E para aplaudir aqueles que sorriem acompanhados. Eu nasci para dar nós nas pontas das cortinas e assim expor a janela pela qual eu observo e admiro amores alheios. Eu nasci para limpar o pó que diariamente se acumula em meu coração. Eu nasci para servir de pouso aos passarinhos que viajam rumo a corações de terceiros para semear suas sementes.  Eu nasci para ser só, e para ver essas flores florescerem. Talvez, isso faça eu ter propriedade e sobriedade para falar sobre o amor.

Eu nasci para ser só e para escolher permanecer só. Nasci para me olhar no espelho e sentir que tenho o bastante. Nasci para dizer que não tenho paciência e que me enjoo rápido de tudo que se pareça com a rotina. Nasci para ser só e me parece que gosto disso. Afinal, nasci com apreço por deixar os outros irem, não sou o tipo de pessoa insistente. Nasci para nunca implorar para alguém ficar. Talvez por isso, eu tenha facilidade para limpar tanta bagunça sozinha.

Eu nasci para escrever sobre a solidão e sobre os romances que vi, de longe, vingarem. Nasci para ser terceira, e não primeira pessoa. A coadjuvante. A narradora onisciente. A poetisa boêmia. Nasci para viver tudo, menos o amor reciproco. Nasci para aceitar e para não prender com correntes os pés daqueles que amei. Nasci para ser só e para ser leve como uma pluma. Sou grata. Talvez, eu não tenha nascido para dar nós e sim para desatá-los. Afinal, em um momento ou outro sempre desato o nó da cortina e cubro a janela. Talvez, eu não tenha nascido para ser só, mas sim para saber o momento certo de sair de cena e parar de observar.

sábado, 4 de novembro de 2017

Um, dois, três...


Na hora de dormir ela chora e conta nos dedos os sonhos que um dia teve. Suspira e lembra-se que perdeu a chave que abre o baú no qual os guardou. Ao sentar-se em sua cama encosta seus pés trêmulos no chão frio e seu semblante desfalecido não muda. Dominada pela apatia tenta contar nos dedos os planos que um dia teve e chora por não conseguir se lembrar deles. O choro silencioso e comedido lhe tira do modo manual e, automaticamente, ela decide ir viver. Viver uma vida que se transformou em um eterno escovar dentes, vestir roupas adequadas, cumprir protocolos, lidar com obrigações, passar parte do dia sentada em cadeiras pouco confortáveis, ou em pé em filas que causam dor nas pernas ao fim do dia, ouvir conversas aleatórias que nada acrescentam em sua vida e que inevitavelmente entram em um ouvido e saem pelo outro.

Assim, enquanto segura a senha que lhe permitirá ser atendida no banco, ela fecha os olhos e conta nos dedos as dores que um dia sentiu e chora por dentro ao constatar que elas não lhe cabem nas mãos. Ao ouvir o sinal que lhe chama para o atendimento ela se levanta mesmo sem forças, engole o choro por alguns segundos, paga suas contas, resolve seus problemas e pega o boleto para pagar no próximo mês. Meio tonta vence a porta giratória, cumprimenta o vigilante com uma leve tristeza nos olhos, aperta os passos, o corpo sente o choque ao deixar o ar condicionado e se chocar com o sol quente, ela aperta ainda mais os passos, certifica-se de que não tem ninguém olhando e “implode”. O choro compulsivo lhe invade e os passos ficam cada vez mais apertados e desordenados. Aflita ela conta nos dedos os medos que ela tanto tem, e desnorteada, atordoada, já quase sem ouvir ou ver, o choro cessa, os medos aumentam e eles já não lhe cabem na alma.

Já em casa, ela se deita, permite-se voltar a chorar copiosamente e sofre. Consternada ela conta nos dedos as decepções que dão sustentação ao medo e, deles, dão conta os dedos das mãos e dos pés. No meio de tudo isso a dor que ela sente ela não consegue explicar. Ela deseja o grito, mas ele não lhe sai da garganta. Ela deseja correr sem rumo, mas as forças não lhe vêm às pernas. Ela deseja o sono, mas sua cabeça não para de funcionar. A dor ela não sabe de onde vem e ela nem sabe nos explicar como ela machuca. Ela só sabe que ela vem e que ela machuca. Machuca por dentro, machuca por fora. A dor que ela sente deixa marcas. Marcas invisíveis e visíveis também que multiplicam o medo, que extinguem os desejos e enterram os sonhos.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Da ilusão à primavera



Gostaria de escrever sobre a primavera, mas ela chegou faz tempo e não demorará a ir embora. Em boa hora a primavera chegou. Queria falar sobre essa hora e sobre essa mais nova primavera... Será que ainda é relevante? Será que ainda vale a pena dizer que o inverno deu lugar à estação que eu mais esperava?

Eu esperei por ela e como esperei. Em alguns momentos ela parecia que nunca mais ia chegar. Eu já estava amargurada com o frio, com o céu sempre desgostoso da vida, com o ar gelado que me feria os lábios, com as cores mortas com as quais, inconscientemente, me identificava... Ouvi dizer que temos tendência a odiar aquilo que, para gente, é como um reflexo no espelho.

Eu queria cores! Deixei-me encantar pelas tímidas folhas que surgiram nas pontas das árvores desfolhadas pela fúria da estação anterior. Senti resquícios de esperança ao ver as vitrines serem invadidas pelas blusinhas de cores radiantes e pelos vestidinhos de estampas florais. A essa altura, já me consumia a antipatia pelos tons pastéis.

A ilusão foi instaurada quando me encontrei com o primeiro Ipê que já estava amarelo. A sensação de que havia me reencontrado com a melhor das estações se reforçou quando vi cair do alto de um Jacarandá recheado pela cor lilás a última folha que nele ficaria durante aquela estação.

Eu me deixei levar, novamente, pela doce estação que hora ou outra traz sua cólera , sua secura, seus ares tóxicos e seus tons piores que os pastéis. O clima seco e a selvageria dos ventos espalham o fogo, a fumaça, o transtorno e o arrependimento naqueles que tanto esperaram a falsa calmaria da primavera. Nem só de céu azul, temperatura agradável à pele e flores é feita a primavera. É difícil de lidar, porque ainda não aprendi a brincar com a beleza, com a alegria ao mesmo tempo que brinco com a feiura e com a dor.

Hoje, eu só quero que a primavera acabe e leve consigo os momentos pífios de alegria e conforto que me proporcionou. De nada vale a beleza do azul anil distorcido pelo cinza que paira na atmosfera. De nada vale o calorzinho aconchegante dos raios desse sol tão otimista quando uma falsa neblina o transforma em uma mera bolo de fogo que não irradia nada a não ser desconforto. De nada me serve a chuva de fuligem que não mata minha sede.

Que eu nunca mais queira a ilusão da primavera...

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Ode ao silêncio

E de repente, o silêncio torna-se a única reação possível. No grande teatro encontro-me em meio à plateia. Resta-me apenas uma velha, robusta e acolchoada poltrona encapada por veludo vermelho que não me acomodou como eu gostaria.

No palco, sob a tábua corrida, assisto àquela cena e sou ensurdecida pelos aplausos que ecoam naquele espaço de acústica perfeita. Sinto o cheiro do carvalho e uma vertigem surpreende-me.

Sem poder participar das palmas, e sem ter o direito de engrossar o coro de ovações reservo-me no dever de permanecer estática.

Na peça em que quase fui protagonista não ganhei sequer o papel de figurante. Não me ofereceram nem ao menos um lugar nos camarotes, mas eu deveria agradecer por estar ao menos nas últimas fileiras. Afinal, não é a poltrona do corredor central, mas por sorte eu estou próxima da saída de emergência.

Eu queria poder ouvir o som produzido a partir do contato do assoalho de madeira e de meus sapatos, mas o querer nem sempre vem acompanhado do poder.

Se eu pudesse ter escolhido teria te aplaudido de pé, mas acabo por contentar-me com o gosto amargo que impregna minha saliva por culpa da ânsia, da angústia, da inquietação e porque não do desespero dos meus membros que já suam frios como mármore. “Aquietem-se, aquietem-se” grito em silêncio. Aceito em silêncio. Compreendo em silêncio. Deixo-te ir em silêncio. As cortinas se fecham e permaneço em silêncio.



quinta-feira, 18 de maio de 2017

O dia em que conheci "Like a Stone"


Hoje, eu poderia falar sobre o Temer ou até mesmo sobre o Aécio. Poderia escrever um poema contando sobre o que vejo nas nuvens ou uma crônica sobre o que esse cotidiano que nos cerca tem para dizer. Eu poderia simplesmente escrever sobre os temas que vocês sabem que eu tenho o costume de falar, mas, hoje, eu quero e preciso falar sobre como eu conheci Like a Stone.


Naquele dia, eu estava deitada no sofá da sala da casa branca de janelas verdes em que eu morava. O sofá tinha listras brancas e vermelhas. Não me lembro ao certo o que eu fazia naquele momento. Eu muito provavelmente estava, apenas, vegetando. Não me lembro também que horas eram, se o dia estava nublado ou ensolarado, se fazia frio ou calor, se era dia ou noite. Diante disso, vocês podem até pensar que esse dia nunca existiu, e que ele é apenas o relato de uma falsa memória. É, de fato, nem sei se posso afirmar que eu morava nessa casa naquele dia, ou se o sofá realmente tinha essa cor, e será mesmo que eu estava deitada? A única coisa que me lembro com clareza desse dia que tento, sem muito sucesso, aqui reproduzir, é de que alguém parou o carro em frente minha casa. Do som desse carro saiu uma música que me acordou do meu estado, provavelmente, vegetativo. Achei a introdução incrível! Bateria, guitarra e um baixo que ecoava lindamente em minha cabeça. Quando ouvi os primeiros versos atrelados àquela melodia forte e aparentemente melancólica eu sabia: “já ouvi esta música em algum lugar”.

A voz rasgada e um pouco rouca do vocalista, que era uma delícia de se ouvir, me deixou extasiada. O refrão era maravilhoso e, certamente, não sairia mais da minha cabeça. Apesar do esforço em tentar memorizar algum trecho da letra, por culpa do meu inglês meio capenga, eu não consegui. “In your house”... nada que fosse suficiente para uma “googlada” eficaz. O som do carro tocou a música até o fim e se retirou, ouvi o ronco do motor, a cantada do pneu e a música se repetindo. E foi nessa mescla de sons que um sentimento que beirava o desespero foi implantado em mim. Sabe quando você precisa descobrir que música era aquela? Então...

Passei semanas murmurando a melodia da música. E ninguém sabia de que música eu estava falando. Comecei a pensar de forma prática e me lembrei de todas as bandas que poderiam ter essa música em meio suas obras. Pensei em vocais que tivessem o mínimo de semelhança... Eddie Vedder, Scott Step, Chad Kroeger, Daniel Johns, e até Brian Jonhson e eu sabia que não era nada disso. Por fim, eu não sabia mais como procurar e, com o tempo, abstraí .

Muito tempo depois, quando minha obsessão por essa música - que eu já havia tachado como icônica, - havia passado, eis que durante uma viagem embalada por inúmeros clássicos do rock nacional e internacional eu escuto a música outra vez. Fiquei nervosa, finalmente eu iria descobrir de quem era aquela música maravilhosa, que por algum motivo já havia entrado para o hall das minhas músicas preferidas. Tudo teria sido diferente se naquele momento eu tivesse perguntado ao motorista do carro de quem era a bendita música, mas meu orgulho não permitiu. A música estava entre uma coletânea de clássicos, eu, como uma amante do rock deveria conhecê-la. Então, por pura bobagem, hesitei e não fiz a pergunta que me tiraria uma baita de uma dor de cabeça: "de quem diabos era aquela musica “nã nã nã nã nã” que não me deixava dormir?". Vida que segue. Não perguntei. A oportunidade passou. Acabei esquecendo da música por mais um longo tempo. Acabei me mudando de casa, meu sofá não tinha mais as cores vermelho e branco, aliás, eu nem tinha mais um sofá.

Até que um dia, deitada em minha cama – porque deitar parece ser a única coisa que consigo fazer – estava “passeando” pelo Spotify e já não sabia mais o que escutar, eu queria algo diferente... me lembrei daquela música que tinha um quê de grunge, tinha um quê daquele rock anos 90... anos 90... anos 90.... foi o que eu escrevi na barra de pesquisas, e entre uma música e outra.... tuts tuts tuts, dum dum dum  on a cob web afternoon, In a room full of emptinness... And if we’re good we’ll lay to rest, anywhere we want to go! O refrão que explodiu: In your house I long to be; Room by room patiently, I’ll wait for you there like a stone. I’ll wait for you there alooooooone!!!


Like a Stone! Like a Stone era o nome da música! Audioslave era o nome da banda! Eu finalmente havia descoberto! Não me preocupei em fazer pesquisas sobre a banda. No fim das contas ela nem era dos anos 90, tinha ali seu pezinho nos anos 2000. Eu só queria e precisava ouvir aquela banda que por algum motivo já havia entrado para o hall das bandas que mais gosto de ouvir. Show Me How to Live, I Am The Highway, Cochise... foram tantas que ouvi e amei... Like a Stone foi a que mais ouvi. A letra me envolvia, a melodia meio que me abraçava. Eu ouvia 1,2,3,4... E a música me fazia chorar... Sim, ela me emocionava, ela me tocava por algum motivo. Acho que não dá pra explicar. Existia aquela sensação: "Eu já ouvi essa música em algum lugar". Existem músicas que nascem com a capacidade de acolher. Existem vozes que ecoam e dizem o “indizível”! Chris Cornell o dono da voz deliciosa de ouvir. O dono da voz que tornou certas coisas “dizíveis”, pelo menos para mim. 

Só hoje fui saber da existência do Soundgarden, do Temple of the dog e da carreira solo de Cornell. Não me atentei a nomes, nem sequer sabia que integrantes do Rage Against The Machine – que é uma banda que tem uma leva de músicas que curto – compunham o meu querido Audioslave. Isso só mostra o quão “poser” eu sou... É uma mania, só pesquiso sobre uma banda após conhecer boa parte de seus álbuns e músicas. Gosto de ir fazendo certas descobertas sem presa. Aos poucos vou descortinando todas as facetas das bandas inseridas no hall das bandas que amo escutar... Hoje eu acordei com a notícia da morte do Chris Cornell e precisava falar sobre Like a Stone, porque eu amo ouvir Like a Stone

Chris, apesar da notícia triste que recebemos hoje, sei que vou continuar desbravando sua obra e sei que vou continuar me apaixonando por ela. Hoje, ouvi Say Hello 2 Heaven (Temple of the dog) e tenho uma notícia boa, ela não sai da minha cabeça. Que música maravilhosa. Não estou aqui para te colocar em um pedestal só porque você partiu, ou muito menos para fingir que eu era uma grandessíssima fã, mas eu preciso agradecer a você e a sua voz por terem me apresentado ao Audioslave, por terem me apresentado a Like a Stone. Descanse em paz Chris Cornell. Hoje, é você quem eu vejo nas nuvens...

segunda-feira, 1 de maio de 2017

A descoberta dos seus olhos

Lembro-me bem do dia em que finalmente descobri que seus olhos eram verdes. Eu estava sentada bem de frente para você. O almoço estava realmente muito bom. O restaurante tinha um toque informal, à nossa volta havia pessoas almoçando sozinhas em mesas quase individuais, umas prestando atenção ao que se passava pela grande TV fixada em uma parede lateral do estabelecimento, outras, apenas devaneando enquanto olhavam para parte do bife preso ao garfo. Havia também famílias silenciosas e famílias não tão silenciosas assim. Uma delas tinha uma linda menininha que precisou de uma cadeira mais alta para conseguir alcançar a mesa. Suas perninhas balançavam e os seus não dentes sorriam. Sorri junto e não pude deixar de comentar “olha que bebê bonito”, você olhou no impulso, deu um sorriso discreto e voltou para o seu prato. Observei os bancos vermelhos em forma de disco e me lembrei de que não sou fã dessa cor. Senti o cheiro do que era preparado, prestei atenção no vai e vem dos funcionários. E entre obrigados e bons apetites, por um segundo, seus olhos se desviaram de seu prato - realmente cheio - e se permitiram olhar um pouco o que se passava na rua que estava bem à sua frente. Os raios de sol entravam pela grande porta que estava aberta e seus olhos vagos, perdidos e pensativos se iluminaram. Por mais que eu me negasse ao contato visual e ao contato com sua alma, que eu inocentemente não sabia que já havia acontecido, cometi o equívoco de te olhar nos olhos, o que me levou a descobrir a verdadeira cor deles. Eu disse: “seus olhos são verdes”, você sorriu de maneira discreta e apenas disse “sim”. Seu olhar naquele momento era verde, até me esqueci de que eles também eram vagos, que pareciam sentir medo e que não queriam se envolver. Você provavelmente não conseguiu descobrir a cor dos meus olhos, muito provavelmente você nem mesmo o quisesse, mas eu descobri a cor dos seus, e eu gostaria de poder ter dito que sou fã dessa cor, mas o importante é que eles ainda devem ser verdes e disso nunca vou me esquecer.

domingo, 23 de abril de 2017

Morada

Já peguei o jeitinho de fechar a janela, e assim, a vida me deu o respaldo para que, enfim, aqui eu fizesse morada. No canto, que hoje chamo de meu, acredito que deixei de rastro a minha presença, seja por meio do criado mudo no qual fiz questão de imprimir minha identidade por meio de pinceladas de tinta lilás e adesivos divertidos, pela colcha que imita a de retalhos estendida sobre a cama, ou até mesmo pelo perfume doce e marcante que deixo pairando no ar.

Os lugares que acolhem são bons. Saber se sentir acolhida, até mesmo pela simplicidade, é melhor ainda. Ter planos, mesmo quando tudo parece ainda ser pouco, faz nascer, de uma forma muito humana, a vontade de conquistar o muito. Olho para as paredes brancas do meu canto e já visualizo o quanto um mural com as fotos de pessoas que eu amo darão um fôlego de vida a mais para um lugar ainda tão desfalecido. Chego a me distrair pensando na disposição dos pôsteres e quadros que também fariam parte das paredes que, apesar de apáticas, são acolhedoras.

E é com esses planos simples que encho minha cabeça de molduras e cores que se mostram otimistas em um cenário que tinha tudo para ser apenas de pessimismo. Ando descobrindo que, embora tenha sua beleza, o choro não é tão bom quanto o sorriso. Não é muito difícil colocar a cabeça no travesseiro e sentir paz ao invés de desespero quando bem lá no fundinho do nosso ser ainda resta um “cadinho” de esperança.


Fui aconselhada a substituir as taquicardias e palpitações por suspiros e muita inspiração. Por mais que dar conselhos seja mais fácil do que tomar atitudes e tentar modificar um pouquinho aquilo que não tem trazido conforto, é bom tentar se permitir acreditar nas moldura e cores que não me saem da cabeça. Nada é tão difícil quanto recomeçar e arriscar, mas me parece também, que isso não é impossível. Gosto da minha capacidade de fazer morada em lugares improváveis, porque acabo chegando à conclusão de que até mesmo o improvável pode ser possível.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Sobre as coisas que me fazem querer lembrar de você

Em um piscar, os meus olhos montaram coleções parecidas com os negativos das velhas câmeras analógicas. Nada era muito nítido, mas a cada frame meio borrado, predominado por tons fantasmagóricos, montei um acervo de lembranças, grande o suficiente, para reviver o que eu pensava já ter esquecido.

Em outro piscar, os meus olhos puderam rever certo momento em que você me pegou pelas mãos e me pediu outro abraço. Você me disse: temos mais cinco minutos. Deitei-me ao seu lado a fim de lhe entregar o abraço que havia pedido, vi meu rosto pressionado no espaço entre seu peito e seu pescoço e acabei espirrando ao sentir o cheiro cítrico do perfume que havia acabado de usar. Por ter sido inusitada tal situação, rimos.

Em um terceiro e pesaroso piscar, meus olhos nos viram em silêncio. Eu sorria, discretamente, mas sorria, enquanto fechava lentamente os olhos e imaginava um leve sorriso também esboçado em seus lábios. Foi aí que, em um quarto e já úmido piscar, meus olhos vagos encaravam a parede branca e lânguida prostrada à minha frente. Consumida por algo parecido com o desespero, vi-me, novamente, tentando lhe dizer, por meio de telepatia, as coisas que por ventura não disse.

Já exausta, por ter descoberto, depois de certo esforço, que eu não possuía o poder da telecinésia, organizei, a meu modo, uma versão com cortes do nosso filme. Retirei os negativos queimados, adaptei as imagens que pareciam não fazer sentido e reescrevi o roteiro, porque infelizmente não me lembrava com exatidão quais palavras havíamos usado. Então, em um piscar parecido com o mar vermelho, meus olhos se imaginaram ao lado dos seus assistindo ao nosso pequeno filme por um álbum que podíamos correr com os dedos.

Em um quinto piscar seco e consternado, meus olhos enxergaram a conformidade. Parecia o bastante lembrar apenas daquilo que me fazia tanto querer lembrar de você. De súbito, em um sexto piscar, vi seus olhos, senti seu cheiro, apreciei seu sorriso, dancei mentalmente ouvindo o som da sua voz, senti apertar-me o seu abraço, me arrepiei com a aspereza de suas mãos, entreguei-me à intensidade do seu beijo e recebi com esperança o seu até breve.

Em um sétimo e, agora, já tranquilo piscar, meus olhos se viram de frente para um espelho, e nesse espelho eu sorria. Assim, guardei os negativos em envelopes vermelhos que selei com adesivos bonitinhos e os deitei dentro de uma caixa de recordações. O nosso filme, modesto e curto, guardei em minha memória para rever nos momentos em que eu começar a pensar que não existem motivos para que eu queira me lembrar de você.

sábado, 4 de março de 2017

Sobre gargalhar até doer a barriga

Era manhã, e ela vestia shorts floridos e uma camiseta branca. Nos cabelos negros e levemente cacheados um laço de fita mal atado combinava com os sapatinhos cor de rosa que estavam em cima de meinhas brancas de renda. Ela sorria, e o céu estava muito azul, o vento estava confortavelmente fresco, o sol confortavelmente quente e o lago enfeitado com lindos patinhos de variadas cores e tamanhos.

Ela se divertia enquanto percorria a grama à margem do lago, imitava os “quá quás” que os animaizinhos produziam e sorria, e gargalhava. Seus pais que a observavam bem de perto se entreolhavam e sorriam juntos. O pai, querendo ver a filha ainda mais feliz, levou pedaços de pão e começou a alimentar os patos, a cada pedaço abocanhado pelos bicos alaranjados como um por do sol, gargalhadas sinceras eram compartilhadas com os transeuntes. Ela gargalhava, gargalhava tanto, que sua barriguinha parecia começar a querer doer, ela pulava, gritava, inclinava o corpo, colocava as mãozinhas na barriga e gargalhava.

O pai, que parecia encantado com, a súbita, e ao mesmo tempo inocente, felicidade da filha, trazia consigo um olhar orgulhoso de si mesmo. Incansável, atirava os farelos para os patinhos e decidiu, sem vergonha, receio, ou pudor se divertir também. Sua barriga parecia começar a dar aquela dorzinha gostosa, e ele pulava, inclinava o corpo, colocava as mãos na barriga e gargalhava, gargalhava e gargalhava.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

As Nuvens

Foi decepcionante descobrir que as nuvens não são feitas de açúcar como o algodão doce. Lá, em um passado não muito distante, lembro-me das horas que perdi admirando o céu, brincando com ursos, viajando na cauda de dragões ou saboreando junto de pássaros e anjos o sabor doce, que derrete na boca, das brancas nuvens de algodão.



Sempre fui apaixonada por algodão doce, eu achava curiosa a maneira como ele era feito. Eu sempre observava isso nas festas infantis que eu ia. Existia uma máquina que rodava e fazia barulho. O moço geralmente jogava açúcar lá dentro e podia também colocar uma coisinha colorida para fazer algodão rosa, verde ou amarelo. O mais surpreendente para mim era ver o açúcar que rodava em um redemoinho de vento se transformar de repente em nuvens. Eu não conseguia parar de pensar... Aposto que as nuvens do céu são feitas da mesma forma. Logo, eu me afastava das outras crianças e ia até o lugar de mais silêncio que eu pudesse encontrar. Era importante que fosse um lugar aberto. Geralmente eu me sentava no chão agarrada aos meus joelhos, e de cabeça alta eu fitava o céu. Era fácil imaginar um senhor gigante que morava em uma casa no céu jogando açúcar pelo ar, e nesse instante sentia uma rajada forte de vento que circulava e misturava tudo. Eu era um grande admirador desse senhor, afinal ele também tinha aquele vidrinho com coisa colorida para misturar no açúcar. Nos fins de tarde eu reparava, ele sempre preparava nuvens cor de laranja e cor de rosa. Eu sempre quis ser doce e livre como as nuvens e como o algodão doce. Pra poder sentir o que ambos sentiam quando se aventuravam em meio ao vento. 

Hoje eu sei que não há nada disso. Sei que nuvens são formadas por partículas condensadas de água ou de gelo. Mas ainda assim continuo admirando a capacidade de mudança que elas têm. Uma nuvem se move, se transforma, se divide, se dispersa. Sua alma errante me fascina. Hoje gosto mais de nuvens do que de algodão doce. O algodão doce é frágil, é preso. É um pó que ganhou forma, mas não ganhou movimento. Ainda na minha infância, me lembro do dia em que comprei algodão doce na pracinha, estava um sol de rachar, o vento soltava baforadas quentes, eu não aguentava de tanto calor... Começou a chover muito forte e eu nem tive tempo de correr para me esconder, acabei me distraindo enquanto procurava um lugar coberto para me proteger da chuva. Quando olhei para minhas mãos, eu tinha um palito e o meu algodão havia sumido. Quando eu olhei para o céu as nuvens ainda estavam lá. Hoje eu sei... É melhor ser livre do que ser doce.